O modelo de cálculo criado para indenizar concessionárias de transmissão do setor elétrico em razão do controle tarifário do governo Dilma Rousseff (PT) levou a um passivo de R$ 50 bilhões resultante de juros que será repassado ao consumidor até 2028. Empresas afirmam se tratar de uma distorção.
Onze distribuidoras que tiveram revisão tarifária aprovada nos últimos meses incorporaram parte dos valores. Já foram atingidos consumidores de: CPFL, em São Paulo; Energisa, em Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Sergipe; Coelba, na Bahia; Cosern, no Rio Grande do Norte; Celpe, em Pernambuco; Enel, no Ceará; Equatorial, em Alagoas; Sulgipe, em Sergipe; e Cemig, em Minas Gerais.
No próximo mês, será a vez dos grandes consumidores, basicamente a indústria, serem afetados. Isso eleverá ainda mais a pressão sobre os custos de produção de mercadorias em meio a alta da inflação e escassez de energia.
Sob orientação do MME (Ministério de Minas e Energia), esse passivo bilionário foi calculado pela Aneel e apontado como uma saída para indenizar concessionárias do setor, incluindo as transmissoras, pela prorrogação de contratos.
O problema começou em 2012. Naquele ano, uma medida provisória de Dilma alterou regras do setor elétrico para baixar artificialmente o preço da conta de luz.
No caso das transmissoras, no primeiro momento, o governo obrigou as concessionárias a praticarem preços muito baixos. A TUST (Tarifa de Uso de Transmissão) refletiu, praticamente, custos da operação.
Os investimentos não amortizados foram, então, ignorados, o que obrigou o governo a, posteriormente, editar outra MP corrigindo o erro.
O MME, então, quase três anos depois, definiu os critérios para a indenização, e a Aneel desenvolveu o modelo de cálculo da RAP (Receita Anual Permitida).
O passivo gerado –e distribuído aos consumidores– foi calculado de 2013 a 2017. Neste último ano, foi iniciado o pagamento em parcelas anuais.
Nos recursos recentes, a que a reportagem teve acesso, associações afirmam que poderão ser processadas pelos consumidores por “apropriação indébita” caso não haja uma correção.
A Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia), por exemplo, ficou sem pagar os valores a mais desde 2017, por meio de uma decisão liminar (provisória) que expirou em novembro de 2019.
O problema, segundo as empresas, é que a Aneel decidiu fazer o acerto de contas justamente em parcelas anuais, enquanto receitas pagas pelos usuários nas contas de consumidores com taxas e impostos foi feita mensalmente ao longo do período.
De acordo com as empresas, no entanto, a agência reguladora desconsiderou os pagamentos efetuados e, ao fazer a conta de reposição anual, cobrou indevidamente juros sobre as parcelas mensais acumuladas –o que gerou as distorções. Esse sobrepreço foi parar nas contas de luz.
A Aneel negou ter cometido qualquer erro no cálculo e afirmou que os critérios foram discutidos exaustivamente em audiências públicas.
Associações, segundo a agência, participaram dos debates e concordaram com o mecanismo de reposição de receitas implementado. As entidades negam ter concordado com o modelo no passado.
Com pandemia, a Aneel decidiu agora reorganizar o pagamento dessas parcelas.
Em julho deste ano, serão incorporados às tarifas R$ 2,2 bilhões pelo arranjo. Em julho de 2022, R$ 3,2 bilhões. A partir de 2023 até 2028, as parcelas passam para R$ 6,8 bilhões, totalizando R$ 46,2 bilhões.
Na carta da Abrace, a entidade considera haver ao menos R$ 9 bilhões cobrados a mais, boa parte em razão dos erros de cálculo.
Para a Abiape (Associação Brasileira de Investidores em Autoprodução de Energia), o valor correto de repasse às tarifas seria de R$ 7,7 bilhões. São R$ 4,6 bilhões de juros cobrados indevidamente e R$ 3,2 bilhões de investimentos não amortizados de 2013 a 2017.
Em nota, a Aneel afirmou que não existe qualquer valor indevido pago pelos consumidores às transmissoras. “Não há erro algum, nem no cálculo, nem no método utilizado pela Aneel para estabelecer as receitas das transmissoras”, disse a agência.
Segundo a agência, o assunto foi judicializado com decisão favorável ao órgão de regulação. “Depois de perder na Justiça, a Abrace e a Abiape buscam uma nova linha de argumentação, baseada em premissas equivocadas que afrontam diretamente a legislação e regulamentação existentes. Causa estranheza esse assunto vir à tona agora, mesmo após anos de discussões e pleno conhecimento do cálculo adotado.”
A agência afirmou ainda que a metodologia do cálculo questionada pelas associações foi debatida exaustivamente em audiência pública em 2017. “A própria Abrace contribuiu com as consultas. E nunca levantou esse questionamento.”
A Aneel disse que está em curso um processo sobre o tema que será julgado nas próximas semanas.
O Ministério de Minas e Energia não respondeu até a conclusão deste texto. Consultadas, Abrace e Abiape não quiseram comentar.
Além de criticarem o cálculo dessa reposição de receitas, essas associações já consideram preocupante a política de contenção do aumento nas tarifas adotada agora pelo governo Jair Bolsonaro e pela Aneel, que, segundo elas, foi muito abaixo do devido.
A Aneel autorizou aumentos de 7% a 8%, a depender da concessionária. Os custos, porém, subiram acima de 20%.
A decisão de postergar esse reajuste –chamado de pedalada pelo setor– foi tomada como forma de amenizar a conta de luz para os consumidores, que, por causa da pandemia, perderam emprego e renda.
A preocupação no setor é que, futuramente, o aumento da tarifa seja ainda maior considerando a alta da própria inflação no período.
O custo da energia já está elevado em razão da crise hídrica, a pior dos últimos 91 anos, o que obrigou o governo a acionar usinas termelétricas. Essas usinas geram energia acima de R$ 1.200 por MWh (megawatt-hora).
A energia já representa o principal fator que fez a inflação medida pelo IPCA bater 8% no acumulado em 12 meses até abril.
Com energia cara e inflação, a retomada da atividade econômica não somente vai demorar mais como será mais tímida. (folhape)